domingo, 2 de janeiro de 2011

Através dos bosques ( curta-metragem ) - JÚLIO CORTÁZAR

Curtametragem inspirado no conto "La continuidad de los parques" de Julio Cortazar.

Trabalho universitário de conclusão do 2º semestre de 2010 do curso de produção audiovisual.

Direção: Matheus Mardegan e Otávio Mendes



Continuidade dos Parques


Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à chácara; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns arrendamentos, voltou ao livro com a tranqüilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado com uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde, e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir descolando-se linha a linha daquilo que o rodeava, e de sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana da colina.

Antes entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara machucada pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela fazia estalar o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e por baixo gritava a liberdade refugiada. Um diálogo desejante corria pelas páginas como riacho de serpentes e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como que querendo retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasse, sem dó nem piedade, interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Começava a anoitecer.

Já sem se olharem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Do caminho oposto, ele virou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu, por sua vez, apoiando-se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois um longo corredor, uma escada acarpetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.
Júlio Cortázar ( 1914 - 1984 ).
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Neste conto Júlio começa narrando a perspectiva de um personagem (O Leitor) que narra a história de um romance infiel, em que o casal traça um plano para assassinar o marido, e eis que o personagem "amante", percorre o caminho descrito pela mulher "amante/esposa", e se depara com a cena inicial, onde o personagem que lê e narra a história ao leitor, é o próprio marido. E que está sentado na poltrona verde aveludada, lendo o romance à nós-leitores. Ou seja, o personagem se torna real; sai de dentro do livro para assasinar o Leitor-marido.
Por Alexandre Pedro.

Um comentário:

  1. Muito bom, Alexandre. Fiquei com vontade de ver mais...PARABÉNS!
    Não ouso falar sobre Julio Cortázar, pq ele simplesmente era genial. Ainda não conhecia esse conto dele, que foi escrito em 1956! e é incrivelmente revolucionário até para os dias de hoje!

    Beijos e um 2011 cheio de realizações!!!!

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